Fortuna e Magnetismo depois do sono
"Obras descansando nas salas e jardim da Casa Museu Marta Ortigão Sampaio"
Artistas: Catarina Branco, Graça Pereira Coutinho, Isaque Pinheiro, José Spaniol, Pedro Tudela e Rute Rosas.
Curadoria: Maria de Fátima Lambert
“…Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?"
(Fernando Pessoa)
As obras já existiam. Deixaram
seus locais de repouso, congeminaram destinos, enveredando para outros
desassossegos.
Deslocaram-se. Entre fachadas
anódinas e paredes coloridas, ouvia-se cochichos silenciosos na casa-museu.
Alguns segredos desdobram–se , sendo decifradas as cronologias das peças
transladadas.
Convergiram, todas, para uma
estância de Verão, espécie de repouso inquieto a fruir na Casa Museu Marta
Ortigão Sampaio. Sabe-se de quanto privaram, puro Magnetismo, entre si,
conspirando por sua Fortuna e, finalmente tomando descanso. Entre todas- são 5
+ 1 - comentaram o fato de lhes existirem rivais, os moradores atávicos da casa
onde iriam permanecer durante a temporada de férias embranquecidas. Ficaram
inquietas. Cientes do perigo latente, pelo confronto entre as obras-primas e as
obras-sobrinhas… pinturas, esculturas, instalações, cerâmicas, papéis e
magnetos contemporâneos a conviverem com objetos históricos e inventariados…
Ainda se arriscavam a serem mal catalogadas, desentendidas num qualquer
ficheiro de gaveta, pois nem da existência de um qualquer website manhoso,
aqueles objetos sobranceiros deviam saber o que fosse…
A Lapinha (Catarina Branco) viajou de avião. Miigrou da ilha para um local insuspeito,
desdenhando dos boatos sussurrados no armazém da galeria. Lá, algumas
esculturas e fotografias conhecidas
profetizavam: “Flores que não mais acabam, lá nas terras antigas que estão
agarradas ao chão. Vêem-se muitas: “…”são tantas as cores que tu, Lapinha, vais passar despercebida.”
Acrescentando, com desdém e inveja: “…
são mais magras e vestem padrões mais modernos. Não essa tua tendência para
repetir “modelitos” dos anos 50…” A Lapinha
ouvia, sem replicar, pensando: “descabidas e solteironas, é o vocês são. E
dor de cotovelo por eu ser tratada como uma princesa neste vaivém por sobre os
ares e os mares. Onde vou ver as cores todas que visto… No caminho posso
refrescar-me com as toalhitas cheirosas que sei para quem viaja em classe
executiva.”
Entretanto, após a viagem transatlântica, espreguiçava-se a cadeira
com duas cabeças (José Spaniol). É sempre conveniente pensar a dobrar, nos
dias que correm. No caso, as cadeiras dialogam em dois pólos: Norte e Sul…De
quando em vez, conversam em línguas diferentes porque são chiques,
esguias e de boa cepa…talhadas em madeira nobre e apreciadora - as térmitas que
se cuidem...pois usam ambientador de figo e limão (consta que no país
pequenino, limão se chama lima…coisa absurda…viu-se lá alguém cortar rodelas de
lima para refresco?...)
As cadeiras, em altitude
relevante, combinaram que durante a noite fariam o pino e, no dia seguinte, se
sentariam às avessas. Ninguém iria adivinhar. Claro que havia um segredo
ancestral, que consistia na condição de sua dupla nacionalidade. Explica-se
fácil o porquê. Foram pensadas e desenhadas nos Brasis. Mas, por conveniência
do artista, cortaram-nas, desbastaram-nas, montaram-nas e seduziram-nas numa
marcenaria, no tal país menorzinho que tem sabedoria de inchar e bater o pé ao
mundo.
São simpáticos, pensaram as
cabeças da cadeira, esses indivíduos com sotaque de Miami que ficaram alojados
no escritório.
Efetivamente, a dupla “maravilha” – mau grado uma carreira fugaz em
Hollywood - os famosos “Miamis” (Graça Pereira Coutinho) ,
chegaram diretamente de um retiro Zen no Oriente - ou talvez viessem algures da
Califórnia, numa auto caravana. No percurso, algumas das pregas vidradas tinham-se
desarrumado. Não se vislumbrava quem soubesse alisá-los com lustro e brilho
pálido. Ingratos. Todos aqueles bibelots que os olhavam, eram uns ingratos. E
corria o boato na casa museu que, numa dinastia anterior, até em cima do
tabuleiro do jogo da glória havia uns “recuerdos” de plásticos, deslindados
numa praia desavergonhada com nome impronunciável: ipanema. Sabia-se lá a que
família de bem ou mal pertenciam. Bem era sabido que antepassados de boa
estirpe frequentavam, às 3fs e aos sábados, as tertúlias na feira da ladra, lá
por Lisboa. Eram parentes afastados, por linhas entrepostas. Afirmavam os miamis, logo à chegada, como se de gatos
siameses se tratasse: “eu não me quero separar de ti. Quero ficar na mesma
sala, na mesma prateleira ou no mesmo rodapé…nem que seja no telhado ao
relento”. O boato de serem relegados , desprestigiados nalguma varanda ou
alpendre, tinham ouvido da boca de uma natureza morta…velha pois tinha sido
pintada há mais de um século. Ela rosnara a meia-voz, pois era tímida e estava
murcha: “…no topo da casa, do lado de fora há uns quadrados de cerâmica que
tomam por hábito serem retângulos e triângulos, consoante as fases da lua.
Azulam facilmente e refletem-se brancos, lado a lado…igualmente inseparáveis –
diurnos e noturnos. Aguardemos.”
Por outro lado, na plenitude de
uma parede bem dormida, expandiu-se uma superfície desgrenhada de cores, com
tal intensidade felina, que se repintou a si mesma – era uma questão
ontológica, no mínimo.
As repinturas (Pedro
Tudela) não se iludem com sons
noctívagos pois são frutos e cúmplices dos reinos de sons e imagens. Alerta. A
espessura purpurina soa num murmurinho, numa lengalenga monocórdica que não
carece amplificação e se acha fora do ninho. Plácido e obscuríssimo, o
auto-retrato de Aurélia de Sousa travestida em Stº António, finge-se atónito pois o fulgor das pinturas é quase superior ao de
sua auréola. Já não lhe bastara a concorrência de umas pinturas meias
herméticas e estrangeiras que transitoriamente haviam ponderado a casa, meses
atrás. Todavia sentia falta da sua beatitude lânguida. Perdera o êxtase ao
jogo, numa noite de insónia e irreverência febril. Fora infeliz, decididamente
infeliz quando a comparavam ao sorriso
escancarado da mulher pintada pela mana Sofia…Ela, rosto esgazeado de orgia,
escarnecia da sua austeridade. Pois se tinha vocação de eremita, porque iria
tolerar esses risos de galdérias em quase frescos de Pompeia? Viesse um vulcão
para engolir o seu amante…sim, pois ela era uma figura erudita, lia até os
livros da Susan Sontag. Mas preferia Antonio Tabucchi ou Edgar Allan Poe: requintes temerários e
obscuros…
Na escapadela de um fim de semana prolongado, uma das repinturas subira
a escadaria e encontrara um par de cadeiras envidraçado num aquário fechado que pensava ser uma sala de jantar.
Surpreendido, o auto retrato em modelo Stº. António, olhou o abismo das
escadas, deparando-se com um oceano de papéis (Rute Rosas) que
iludiam o desafio da gravidade. Na sua leveza e vazio, eles curiosamente, não caiam.
Mantinham-se impolutos, dignos e cientes de seu elenco literário e académico
subtil. Quase se ouvia uma respiração em uníssono: assim tinham aprendido a
regular o seu magnetismo, sístole e diástole. Com que firmeza, os papéis
encarquilhados pela luz do conhecimento haviam sobrevoado andaimes,
magnetizados por uma claridade que ofuscava o contraditório do gosto. Ansiavam pelo poiso embebido em café manchado
de cinza e fumo mentolado. Eram pedaços finos e sorridentes, ironizando sobre a
sustentação do conjunto que vigiavam em estado de quietude, suspensão e
utopia…essas expressões de rotina que uma das culpadas usava para exprimir as
suas ideias mais obscuras. Talvez que alguém os libertasse a todos e
desregulasse os esquemas que o solstício tardio teimava em colar nos olhares
dos visitantes. Aguardemos, repetiram em coro: não era uma tragédia grega, tão
somente um sexteto: cinco solistas dentro da casa e um que os guardava, na
entrada da garagem que nunca existira. Fortuna, fortuna, fortuna, fortuna, fortuna…: ouviam-se as vozes das peças em
polifonia ondulante, quesitos de Palestrina na premonição de Hildegarda…
(a continuar)
Maria de Fátima Lambert
Catarina Branco
Lapinha, 2011, papel recortado à mão
179x115x19 cm
Catarina Branco
Lapinha, 2011, papel recortado à mão
179x115x19 cm
Catarina Branco
Lapinha, 2011, papel recortado à mão
179x115x19 cm
Catarina Branco
Lapinha, 2011, papel recortado à mão
179x115x19 cm
(...) A
Lapinha ( 2011) é o fogo. Esta peça é uma árvore genealógica da linhagem
materna de Catarina Branco, evocando a família emigrada para os EUA, assim como
a estrutura da Trindade. O seu título resulta dos objectos populares feitos com
lapas do mar que homenageiam a Sagrada Família. A associação com o Fogo decorre
do aspecto de calor humano que propicia o aconchego e o refúgio. Um elemento
curioso ocupa a parte inferior e relaciona-se com uma lenda indiana do sapo das
três pernas que, quando se zanga, utiliza este terceiro elemento para provocar
na Terra um terramoto como expressão do seu desagrado. Este aspecto sísmico
presente igualmente no vaso de terra na parte cimeira da obra, faz com que esta
noção de protecção ganhe ainda mais sentido, fazendo uma homenagem à coragem
das pessoas que, apesar, das características ameaçadoras da ilhas vulcânicas e
do isolamento da condição de ilhéu, aqui permanecem, ligadas aos valores da
família e das origens.
Carla de Utra Mendes
Lisboa, 2011
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