terça-feira, 7 de outubro de 2014

Casa Museu Marta Ortigão Sampaio - Porto - Julho 2014 - Curadoria: Maria de Fátima Lambert

Casa Museu Marta Ortigão Sampaio - Porto - Julho 2014

Fortuna e Magnetismo depois do sono
"Obras descansando nas salas e jardim da Casa Museu Marta Ortigão Sampaio"

Artistas: Catarina Branco, Graça Pereira Coutinho, Isaque Pinheiro, José Spaniol, Pedro Tudela e Rute Rosas.

Curadoria: Maria de Fátima Lambert


“…Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?"
(Fernando Pessoa)

 

As obras já existiam. Deixaram seus locais de repouso, congeminaram destinos, enveredando para outros desassossegos. 

Deslocaram-se. Entre fachadas anódinas e paredes coloridas, ouvia-se cochichos silenciosos na casa-museu. Alguns segredos desdobram–se , sendo decifradas as cronologias das peças transladadas.  

Convergiram, todas, para uma estância de Verão, espécie de repouso inquieto a fruir na Casa Museu Marta Ortigão Sampaio. Sabe-se de quanto privaram, puro Magnetismo, entre si, conspirando por sua Fortuna e, finalmente tomando descanso. Entre todas- são 5 + 1 - comentaram o fato de lhes existirem rivais, os moradores atávicos da casa onde iriam permanecer durante a temporada de férias embranquecidas. Ficaram inquietas. Cientes do perigo latente, pelo confronto entre as obras-primas e as obras-sobrinhas… pinturas, esculturas, instalações, cerâmicas, papéis e magnetos contemporâneos a conviverem com objetos históricos e inventariados… Ainda se arriscavam a serem mal catalogadas, desentendidas num qualquer ficheiro de gaveta, pois nem da existência de um qualquer website manhoso, aqueles objetos sobranceiros deviam saber o que fosse…
 
 
  
 Somente a Autoestrada (Isaque) pintada de azul fresco tinha a certeza branca absoluta de que nada se lhe podia igualar ou não fosse ela um caso de sinalização vermelha única…No decurso da viagem entre Tibães – sua morada legítima mais recente – e o Porto, se surpreendera com o que observara. De quando em vez, do alto do seu assento duplo no camião, vislumbrava-se – como imagem de si – tal como se estivesse ao espelho (síndroma de alter-ego) mas o facto é que não havia nenhum à vista. Sim, porque espelho é algo que,  obviamente, uma autoestrada assinalada, de boa estirpe, sabe! Então, caiu na moedeira tristonha ao saber-se familiar, sem deles se acarinhar, pois afastavam-se , mais e mais, dela com a toda celeridade. Chegou ao destino, numa rua que, de todo, não lhe era parente próxima, talvez e somente por afinidade. Foi despejada ao relento, com suspeitas previstas de clima desmoderado…fim de autoestrada agoirento…
A Lapinha (Catarina Branco) viajou de avião.  Miigrou da ilha para um local insuspeito, desdenhando dos boatos sussurrados no armazém da galeria. Lá, algumas esculturas e fotografias  conhecidas profetizavam: “Flores que não mais acabam, lá nas terras antigas que estão agarradas ao chão. Vêem-se muitas: “…”são tantas as cores que tu, Lapinha, vais passar despercebida.” Acrescentando, com desdém e inveja:  “… são mais magras e vestem padrões mais modernos. Não essa tua tendência para repetir “modelitos” dos anos 50…” A Lapinha ouvia, sem replicar, pensando: “descabidas e solteironas, é o vocês são. E dor de cotovelo por eu ser tratada como uma princesa neste vaivém por sobre os ares e os mares. Onde vou ver as cores todas que visto… No caminho posso refrescar-me com as toalhitas cheirosas que sei para quem viaja em classe executiva.”
 
Entretanto, após a viagem transatlântica, espreguiçava-se a cadeira com duas cabeças (José Spaniol). É sempre conveniente pensar a dobrar, nos dias que correm. No caso, as cadeiras dialogam em dois pólos: Norte e Sul…De quando em vez, conversam em línguas diferentes porque são chiques, esguias e de boa cepa…talhadas em madeira nobre e apreciadora - as térmitas que se cuidem...pois usam ambientador de figo e limão (consta que no país pequenino, limão se chama lima…coisa absurda…viu-se lá alguém cortar rodelas de lima para refresco?...)

As cadeiras, em altitude relevante, combinaram que durante a noite fariam o pino e, no dia seguinte, se sentariam às avessas. Ninguém iria adivinhar. Claro que havia um segredo ancestral, que consistia na condição de sua dupla nacionalidade. Explica-se fácil o porquê. Foram pensadas e desenhadas nos Brasis. Mas, por conveniência do artista, cortaram-nas, desbastaram-nas, montaram-nas e seduziram-nas numa marcenaria, no tal país menorzinho que tem sabedoria de inchar e bater o pé ao mundo. 

São simpáticos, pensaram as cabeças da cadeira, esses indivíduos com sotaque de Miami que ficaram alojados no escritório. 
 
Efetivamente, a dupla “maravilha” – mau grado uma carreira fugaz em Hollywood - os famosos “Miamis(Graça Pereira Coutinho) , chegaram diretamente de um retiro Zen no Oriente - ou talvez viessem algures da Califórnia, numa auto caravana. No percurso, algumas das pregas vidradas tinham-se desarrumado. Não se vislumbrava quem soubesse alisá-los com lustro e brilho pálido. Ingratos. Todos aqueles bibelots que os olhavam, eram uns ingratos. E corria o boato na casa museu que, numa dinastia anterior, até em cima do tabuleiro do jogo da glória havia uns “recuerdos” de plásticos, deslindados numa praia desavergonhada com nome impronunciável: ipanema. Sabia-se lá a que família de bem ou mal pertenciam. Bem era sabido que antepassados de boa estirpe frequentavam, às 3fs e aos sábados, as tertúlias na feira da ladra, lá por Lisboa. Eram parentes afastados, por linhas entrepostas. Afirmavam os miamis, logo à chegada, como se de gatos siameses se tratasse: “eu não me quero separar de ti. Quero ficar na mesma sala, na mesma prateleira ou no mesmo rodapé…nem que seja no telhado ao relento”. O boato de serem relegados , desprestigiados nalguma varanda ou alpendre, tinham ouvido da boca de uma natureza morta…velha pois tinha sido pintada há mais de um século. Ela rosnara a meia-voz, pois era tímida e estava murcha: “…no topo da casa, do lado de fora há uns quadrados de cerâmica que tomam por hábito serem retângulos e triângulos, consoante as fases da lua. Azulam facilmente e refletem-se brancos, lado a lado…igualmente inseparáveis – diurnos e noturnos. Aguardemos.”

Por outro lado, na plenitude de uma parede bem dormida, expandiu-se uma superfície desgrenhada de cores, com tal intensidade felina, que se repintou a si mesma – era uma questão ontológica, no mínimo. 

As repinturas  (Pedro Tudela) não se iludem com sons noctívagos pois são frutos e cúmplices dos reinos de sons e imagens. Alerta. A espessura purpurina soa num murmurinho, numa lengalenga monocórdica que não carece amplificação e se acha fora do ninho. Plácido e obscuríssimo, o auto-retrato de Aurélia de Sousa travestida em Stº António,  finge-se atónito pois  o fulgor das pinturas é quase superior ao de sua auréola. Já não lhe bastara a concorrência de umas pinturas meias herméticas e estrangeiras que transitoriamente haviam ponderado a casa, meses atrás. Todavia sentia falta da sua beatitude lânguida. Perdera o êxtase ao jogo, numa noite de insónia e irreverência febril. Fora infeliz, decididamente infeliz  quando a comparavam ao sorriso escancarado da mulher pintada pela mana Sofia…Ela, rosto esgazeado de orgia, escarnecia da sua austeridade. Pois se tinha vocação de eremita, porque iria tolerar esses risos de galdérias em quase frescos de Pompeia? Viesse um vulcão para engolir o seu amante…sim, pois ela era uma figura erudita, lia até os livros da Susan Sontag. Mas preferia Antonio Tabucchi ou Edgar Allan Poe: requintes temerários e obscuros…


Na escapadela de um fim de semana prolongado, uma das repinturas subira a escadaria e encontrara um par de cadeiras envidraçado num aquário  fechado que pensava ser uma sala de jantar. Surpreendido, o auto retrato em modelo Stº. António, olhou o abismo das escadas, deparando-se com um oceano de papéis (Rute Rosas) que iludiam o desafio da gravidade. Na sua leveza  e vazio, eles curiosamente, não caiam. Mantinham-se impolutos, dignos e cientes de seu elenco literário e académico subtil. Quase se ouvia uma respiração em uníssono: assim tinham aprendido a regular o seu magnetismo, sístole e diástole. Com que firmeza, os papéis encarquilhados pela luz do conhecimento haviam sobrevoado andaimes, magnetizados por uma claridade que ofuscava o contraditório do gosto.  Ansiavam pelo poiso embebido em café manchado de cinza e fumo mentolado. Eram pedaços finos e sorridentes, ironizando sobre a sustentação do conjunto que vigiavam em estado de quietude, suspensão e utopia…essas expressões de rotina que uma das culpadas usava para exprimir as suas ideias mais obscuras. Talvez que alguém os libertasse a todos e desregulasse os esquemas que o solstício tardio teimava em colar nos olhares dos visitantes. Aguardemos, repetiram em coro: não era uma tragédia grega, tão somente um sexteto: cinco solistas dentro da casa e um que os guardava, na entrada da garagem que nunca existira. Fortuna, fortuna, fortuna, fortuna, fortuna…: ouviam-se as vozes das peças em polifonia ondulante, quesitos de Palestrina na premonição de Hildegarda…


(a continuar)

Maria de Fátima Lambert

 

 

 

 


Catarina Branco

Lapinha, 2011, papel recortado à mão

179x115x19 cm








Catarina Branco

Lapinha, 2011, papel recortado à mão

179x115x19 cm






Catarina Branco

Lapinha, 2011, papel recortado à mão

179x115x19 cm







 
  
Catarina Branco

Lapinha, 2011, papel recortado à mão

179x115x19 cm
 


 


 
(...) A Lapinha ( 2011) é o fogo. Esta peça é uma árvore genealógica da linhagem materna de Catarina Branco, evocando a família emigrada para os EUA, assim como a estrutura da Trindade. O seu título resulta dos objectos populares feitos com lapas do mar que homenageiam a Sagrada Família. A associação com o Fogo decorre do aspecto de calor humano que propicia o aconchego e o refúgio. Um elemento curioso ocupa a parte inferior e relaciona-se com uma lenda indiana do sapo das três pernas que, quando se zanga, utiliza este terceiro elemento para provocar na Terra um terramoto como expressão do seu desagrado. Este aspecto sísmico presente igualmente no vaso de terra na parte cimeira da obra, faz com que esta noção de protecção ganhe ainda mais sentido, fazendo uma homenagem à coragem das pessoas que, apesar, das características ameaçadoras da ilhas vulcânicas e do isolamento da condição de ilhéu, aqui permanecem, ligadas aos valores da família e das origens.
 
 
Carla de Utra Mendes
Lisboa, 2011     

 
 
 


 

 
 

 
 
 
 

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