A Inauguração - Igreja do Colégio e Núcleo de Arte Sacra
Arcanjo - Papel recortado à mão - 175X110X16cm
Povoação - Papel recortado à mão - 175X110X16cm
Registo - Papel recortado à mão - 175X110X16cm
Lapinha - Papel recortado à mão - 175X110X16cm
Ilha Desconhecida - Papel recortado à mão - 175X110X16cm
Densa vegetação - papel recortado à mão - 100X70X16cm
Paisagem - papel recortado à mão - 100X70X16cm
Corações ao alto - papel recortado à mão - 100X70X16cm
Luz Suprema - papel recortado à mão - 100X70X16cm
Luísa Soares de Oliveira em Ponta Delgada
Catarina Branco pertence a uma geração que não necessita de renegar aquilo que construiu a identidade da mulher durante séculos para se afirmar. Pelo contrário. No seu trabalho, esta identificação feminina - um certo estereótipo colado aos "crafts" realizados por mulheres: as rendas e bordados, o trabalho têxtil, a doçaria conventual, a confecção de adornos litúrgicos em papel e escama de peixe - subjaz à reflexão sobre a identidade açoreana que a sua obra convoca. O Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, continua a abrir-se à arte contemporânea.
Catarina Branco (n. 1974) conta sempre uma história quando está a falar desta exposição. Diz ela que, em criança, passava muito tempo com a avó na aldeia de Fenais da Luz, na costa norte da ilha de São Miguel, Açores. Fenais da Luz possui uma estrutura urbana característica, com as casas que dispostas em círculo em torno da igreja. Os avós de Catarina produziam vinho, e a avó, muito religiosa, ocupava-se das coisas da igreja local. Quem conhece bem os Açores sabe que as festas religiosas são uma explosão de cor: os caminhos enchem-se de tapetes feitos de pétalas de flores, os andores das procissões ornamentam-se com enfeites de papel recortado, e existe toda uma iconografia ligada à religiosidade que permanece viva nas tradições locais. Catarina Branco, em criança, ajudava a avó nos recortes de papel de seda colorido que a senhora gostava de fazer. Mais tarde, já formada pela ESBAL e a viver nos Açores, uma intolerância às substâncias químicas presentes nas tintas impediu-a de pintar durante uma temporada. Lembrou-se então dos recortes de papel da sua infância e decidiu mudar de técnica. "Passei a desenhar com a tesoura, a cola e o papel colorido", diz.
E foi com estes recortes de papel colorido que o público português pôde ver a sua obra em ocasiões pontuais. Uma exposição na Fonseca Macedo, de Ponta Delgada, em 2010, e a inclusão de peças suas nas representações que esta galeria tem trazido nos últimos anos à feira de arte de Lisboa aguçaram a curiosidade sobre o processo que fundamenta o seu trabalho e os laços de afinidade e distância que ele pode, ou não, estabelecer com obras de outros artistas. É certo que existe uma qualidade feminina nas grandes colagens de Catarina Branco, e que lhes advém de um certo estereótipo colado ainda hoje aos "crafts" tradicionalmente realizados por mulheres: as rendas e bordados, que recordam certos tipos de papéis que usa, o trabalho têxtil, a doçaria conventual, e a confecção de adornos litúrgicos em papel e, no caso açoreano, escama de peixe. Mas essa qualidade, se é assumida no trabalho desta artista, nunca é criticada: Catarina Branco pertence já a uma geração que não necessita de renegar aquilo que construiu a identidade da mulher durante séculos para se afirmar. Pelo contrário. No seu trabalho, esta identificação feminina subjaz à reflexão sobre a identidade açoreana que a sua obra também convoca.
Memória
Posto isto, há dois anos Catarina candidatou-se a uma bolsa de criação artística criada pelo museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, com o apoio da Secretaria Regional da Cultura dos Açores. O júri, que tinha vindo do continente para o efeito, não teve dúvidas em atribuir-lhe o prémio, que lhe permitiu conceber esta exposição em todos os seus pormenores. O Museu Carlos Machado é um museu como há tantos outros no país, com colecções ecléticas que vão da arte à etnologia e aos brinquedos. Localizado no antigo convento de Santo André, está há tempos encerrado para obras, mas recuperou dois outros espaços na cidade que destina ao núcleo de arte sacra (Igreja do Colégio dos Jesuítas) e a exposições temporárias (Recolhimento de Santa Bárbara). São estes dois edifícios que o director do museu, padre Diogo Melo, reservou para a exposição "Fez-se Luz", de Catarina Branco (até 31 de Março), no seguimento de outras de arte contemporânea que também tem apoiado, como a grande colectiva de Ana Vieira que esteve no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em 2011, "Muros de Abrigo".
A antiga igreja dos Jesuítas possui todas as características dos templos desta ordem: grande, com um salão único de vastas dimensões, ostenta uma cabeceira inteiramente coberta de talha em madeira que a expulsão da ordem pelo Marquês de Pombal, em 1759, impediu de dourar. A inquietante característica inacabada do lugar combina com a efemeridade das peças da artista, e sobretudo com uma grande cruz desenhada no chão segundo os métodos tradicionais dos tapetes de flores, mas preenchida agora com "confettis" de carnaval, em vez das usuais pétalas de hortense. É que, recorde-se, o papel é o material que prefere para trabalhar. Depois, encostadas aos altares laterais ou em frente do altar-mor, há caixas de acrílico que recebem as colagens de Catarina Branco. Todas elas possuem a mesma forma de base, uma estilização da forma da ilha de São Miguel, feita sistematicamente a partir de mapas turísticos de papel. E todas elas recebem nomes alusivos à história da descoberta e povoação da ilha, que surge sempre aqui como pano de fundo e justificação da identidade pessoal. "A ilha desconhecida", por exemplo, ou "Densa vegetação", são alguns deles.
"Só na terceira viagem a São Miguel é que os navegantes desembarcaram. Por razões várias, não conseguiram fazê-lo antes. Entretanto, já tinham, como era costume, deixado casais de animais na ilha, a título de experiência, e só se estes sobreviviam até à viagem seguinte é que o povoamento humano se iniciava", conta a artista. Por isso, há uma peça ("Povoação") onde pequenos animais de plástico serpenteiam entre as formas recortadas à mão, havendo mesmo uma vaca toda coberta com lantejoulas e purpurina, a recordar o animal que marcaria, alguns séculos depois, a economia de toda a região.
E a religiosidade popular, que a artista convoca quase como uma certidão de nascimento da sua actividade artística, mantém-se na citação dos registos - pequenos quadros com uma litografia religiosa enquadrada por rendas e dourados - realizados por mãos anónimas que concentravam a piedade doméstica aqui como noutras regiões do país. Pontualmente, Catarina não desdenha a utilização da escama de peixe em vez do papel recortado, à imagem do artesanato da sua região. Outras, como em "Arcanjo", são as próprias características da dobragem do papel que aproximam a peça de uma imagem sagrada: penas, auréolas, coroas do Espírito Santo, mas também ouriços do mar e conchas convocam esse universo também sentimental que ainda hoje subsiste nos meios mais populares. Duas vitrines, uma em cada espaço de exposição mostram aliás objectos, fotografias e livros que pontuaram o processo criativo da artista.
As peças no núcleo de Santa Bárbara (antiga casa que albergava idosas de condição social elevada) são mais simples de aparência, mas mantêm a forma da ilha como suporte para a construção em volume. Catarina Branco percebe que há um caminho no seu trabalho na direcção da máscara, na medida em que o corpo tende a tomar o lugar dessa ilha que serve de suporte ao trabalho artístico. Como Ana Vieira, a grande referência da arte contemporânea nos Açores, sempre o fez, esta pesquisa identitária dobra-se numa reflexão sobre a condição insular e, no caso presente, mesmo micaelense. O director do Museu Carlos Machado não se enganou quando convidou a artista para integrar um projecto de inserção de peças de arte contemporânea numa igreja aberta ao culto, neste caso a de São José. Depois dos artistas Urbano e Maria José Cavaco, Catarina exporá durante o mês de Agosto, coincidindo com um festival de música de órgão que terá lugar nessa igreja. Segundo Duarte Melo, que escolheu os artistas com base na capacidade simbólica do respectivo trabalho, e lhes deixa inteira liberdade para realizarem o que quiserem, "é uma maneira de fazer memória." E o trabalho de Catarina Branco, com efeito, faz memória, há muito tempo.
Museu Carlos Machado - Ponta Delgada
Até 31 de Março está patente a exposição, Fez-se Luz de Catarina Branco. A exposição divide-se pelos dois núcleos do Museu: obras como Arcanjo (2010), Povoação (2011) e Lapinha (2011) partilham memórias familiares com memórias de um coletivo micaelense, refletindo experiências pessoais e tradições religiosas e populares, aludindo a um lado espiritual, daí expostas na Igreja do Colégio. Do lado de Santa Bárbara, Ilha Desconhecida (2010), Vegetação Densa (2011) e Corações ao Alto (2011), pela sua plasticidade, evidenciam o lado estético mais pop da obra da artista. Pela sua forma e pela técnica, que honra o tradicional trabalho do recorte de papel (e, também, de mapas), tão típico açoriano, a artista confere às suas obras a mesma exuberância visual da ilha que pretende elogiar.
"No caso de Catarina Branco podemos afirmar que esta trabalha a partir do lugar específico que é a cultura açoriana mas, através desta, faz referência ao que é característico de qualquer civilização – o seu lado de miscigenação, ou de hibridação. Nestas obras, podemos verificar as ligações estabelecidas com a África, o Brasil e o Oriente, fazendo jus à própria povoação e colonização açorianos, ela própria protagonizada por povos de diferentes origens. Este aspecto coloca as suas obras numa perspectiva verdadeiramente globalizante, reflectindo sobre a ideia de equivalência ou partilha cultural." ( Carla Utra Mendes, curadora )
Vitrine
Livraria - Sol/Mar
Alma Mater – entre o espírito e a matéria
"O coração do ilhéu é infinito na aspiração"1
A expressão Alma Mater pode ser traduzida por “a mãe que alimenta”. Este
lado matriarcal, feminino, está intrinsecamente ligado às ideias de dádiva,
devoção, entrega, protecção e amor incondicional, aspectos que podemos
encontrar, das mais variadas formas, na obra de Catarina Branco.
Em primeiro lugar, as peças aqui apresentadas são consequência de um
recolhimento introspectivo e de uma atenção aos pormenores, característicos
de qualquer labor feminino. Em segundo, possuem um lado autobiográfico,
constituindo-se como uma homenagem à sua avó paterna e à sua mãe pela
transmissão de um legado que se expressa, entre outros aspectos, na
técnica do recorte de papel, tradicionalmente açoriano.
A partir desta evidência, podemos, desde logo, distinguir dois aspectos
fundamentais para a interpretação destas obras: um lado colectivo que apela
a uma história local, e um outro, subjectivo, que reclama o valor da memória
e a sua imensa capacidade criativa e ficcional. A esta dicotomia juntam-se
outras, como o binómio masculino-feminino (a memória do pai e da mãe, a
força dos homens na pesca e na agricultura e o aproveitamento dos materiais
resultantes desse trabalho tais como as escamas de peixe ou as folhas de
milho por parte das mulheres); o espiritual e o religioso (apelando à memória
do culto do Espírito Santo, simultaneamente sagrado e profano); o efémero e
o eterno (pela referência à cultura material e imaterial); a errância e a
presença (em relação às questões da emigração e à ligação compulsiva às
raízes); assimetria/simetria (presente nas obras); o natural e o cultural; e, em
última instância, o local e o global.
Este último ponto é particularmente significativo para entendermos a
contemporaneidade deste conjunto de obras. Podemos afirmar, neste
sentido, que este tipo de trabalhos se aproxima do que N. Borriaud designa
como altermodernidade, termo aplicado à arte contemporânea conotada com
o estádio actual da globalização. Este conceito implica que, a par da
necessidade de mundialização do artista (considerando que o território no
qual se move não implica um determinado posicionamento geográfico) está,
igualmente, num movimento aparentemente contrário a resgatar os
particulares e os nacionalismos. Desta forma, o sujeito artístico está
preocupado em reflectir sobre questões que se prendem com a sua
identidade e, ao mesmo tempo, com as culturas de outras origens. Devido a
este factor, muitas obras de arte daqui resultantes são uma mistura de
referências, constituídas em torno de conceitos como os “arquivo” e
“mapeamento”, e cujos elementos usados constituem uma verdadeira manta
de retalhos, num hipertexto no qual podemos ler várias narrativas identitárias.
1 Torres, José, in AAVV, História dos Açores – Do Descobrimento ao Séc. XX, Instituto Açoriano de
Cultura, 2008, p. 11.
No caso de Catarina Branco podemos afirmar que esta trabalha a partir do
lugar específico que é a cultura açoriana mas, através desta, faz referência
ao que é característico de qualquer civilização – o seu lado de miscigenação,
ou de hibridação. Nestas obras, podemos verificar as ligações estabelecidas
com a África, o Brasil e o Oriente, fazendo jus à própria povoação e
colonização açoriana, ela própria protagonizada por povos de diferentes
origens. Este aspecto coloca as suas obras numa perspectiva
verdadeiramente globalizante, reflectindo sobre a ideia de equivalência ou
partilha cultural.
Pelo seu aspecto material e estético, podemos (com todos os riscos inerentes
à invenção de novos conceitos) aqui aplicar uma estética alterpop, que, a
partir da cultura popular e particular se reinventa, inserindo-se na culturamundo
(G. Lipovetsky). Ao invés dos produtos de massa globais (tais como
as marcas Coca-Cola ou outras) que caracterizaram a cultura pop, estes
trabalhos apelam à globalização pelo seu lado tradicional presente em todas
as culturas. Embora a sua forma possa variar, as técnicas e materiais
utilizados são, frequentemente, os mesmos, havendo certas equivalências de
significado e conteúdo entre objectos de civilizações muito diferentes.
Se recordarmos a teoria de M. Augé acerca do espaço contemporâneo que
afirma que vivemos, actualmente, em locais transitórios como aeroportos,
centros comerciais, entre outros, designados como não-lugares que
caracterizam um sujeito vazio, descentrado, Catarina Branco trabalha,
justamente, no seu oposto complementar, resgatando o lugar antropológico
em que a memória e o legado histórico são protagonistas, dotando o sujeito
de uma identidade própria que, nos tempos actuais, parece perdida pelo
processo homogeneizador de uma certa globalização. No entanto, como
comprova este género de abordagem, ela pode ser feita, precisamente,
através daquilo que é mais específico de cada cultura.
Para M. Certeau este tipo de exploração do espaço relaciona-se com a
experiência da infância em contraponto à solidão inerente dos não-lugares,
algo a que devemos estar atentos na análise destas obras. Estas estão
directamente ligadas à história pessoal da artista e à sua vivência enquanto
criança nos Fenais da Luz, na convivência com a sua avó paterna que lhe
legou as tradições do recorte de papel, o aproveitamento dos materiais
perecíveis, a construção dos tapetes de flores para as procissões religiosas e
o lado lúdico de alguém que vivia feliz no seu espaço contido da sua casa.
Esta é, igualmente, uma forma de viagem mas, agora, em direcção ao
interior, ao íntimo.
No entanto, o aspecto ambivalente do local e do global não se esgota nos
factos acima mencionados. A componente da espiritualidade constitui-se
como um factor fundamental para a compreensão destes trabalhos, pela
referência ao culto do Espírito Santo que tão intrinsecamente caracteriza as
ilhas mas que possui um lado ecuménico e universal, espalhando-se pelo
Brasil e pelos EUA através da diáspora açoriana, comprovando, assim, o seu
carácter universal. As próprias origens deste culto são algo misteriosas,
numa amálgama de tradições profanas e religiosas, provenientes de vários
locais. Originalmente, pensa-se, estará ligado à Ordem dos Templários que,
aquando a sua extinção, passou este legado à Ordem de Cristo que o levou
nas caravelas portuguesas na época dos Descobrimentos, considerada por
muitos autores como o verdadeiro inicio da globalização. Por outro lado,
recordando a dimensão feminina acima mencionada, o culto está ligado à
Rainha Santa Isabel e tem-se afirmado que o próprio Espírito Santo é o lado
feminino de Deus, pela sua ligação à Mãe Terra, algo que comprovamos, por
exemplo, em actos do culto como a oferta dos primeiros frutos ou do pão ao
Divino. Esta característica arcaica faz com que possam ser associados
inúmeros rituais, religiosos ou profanos, espalhados pelo mundo inteiro.
A complexidade do ritual não se esgota aqui. Existe uma vertente erudita que
é paralela a este lado popular. O seu legado esotérico ou místico, por vezes
profético, tem origem no pensamento de Joaquim de Fiore, que previa três
idades do Mundo. A saber: a Primeira Idade, correspondendo ao governo de
Deus Pai, e é representada pelo poder absoluto, inspirador do temor sagrado
que perpassa o Velho Testamento; a segunda, que se iniciou com a
revelação do Novo Testamento e a fundação da Igreja de Cristo; e a terceira,
vindoura, que será o advento do Império do Divino Espírito Santo, um tempo
novo onde o amor universal e a igualdade entre todos os cristãos, serão
alcançados. No Império do Divino Espírito Santo, as leis evangélicas serão
finalmente realizadas, não só na sua letra mas no seu espírito, e a sua
mensagem será compreendida e aceite por toda a humanidade. Na Terceira
Idade não haverá necessidade de instituições disciplinadoras da fé, já que
esta será universal e baseada directamente na inspiração divina. Qualquer
plebeu será Imperador, já que a sabedoria divina a todos iluminará, de forma
igualitária.
O carácter libertador desta nova era faz com que o culto do Espírito Santo
tenha um carácter profético mas igualmente dotado de uma espiritualidade
sem contornos definidos pela religião, o que parece corresponder à apetência
actual por correntes de New Age (ioga, entre outras) que procurem caminhos
da salvação mais pessoais, mais livres. A ideia de uma exploração pessoal
(que se verifica em determinados aspectos do culto ao Espírito Santo como
os quartos decorados em casas particulares, entre outros) liga-se a um
conceito fundamental na história da filosofia que advém do “conhece-te a ti
mesmo”, socrático, que o filósofo M. Foucault trabalhou como o cuidado de
si, no sentido de uma ética para a estética da existência. Nas obras de
Catarina Branco, através da reflexão profunda sobre a sua história pessoal,
podemos verificar esta contemplação do Eu com o sentimento último de
apelo à colectividade, resgatando valores fundamentais como o legado
patrimonial ou a espiritualidade perdida que se torna, sobretudo nestes
tempos de crise, absolutamente necessária.
Outro aspecto bastante actual do culto é tratado pelo filósofo Agostinho da
Silva, que resgata esta tradição do ponto de vista sociológico, vendo, em três
aspectos do ritual, o futuro desejável da humanidade numa relação mais
adequada com a Natureza, ao mesmo tempo que apela a um carácter
comunitário, revolucionário e económico. Num aspecto bastante sensível nos
tempos actuais, vemos no Espírito Santo e no ritual do Bodo (partilha das
refeições), um verdadeiro projecto económico, que traz ao de cima a questão
da partilha e da troca de géneros entre a comunidade contra o capitalismo
exacerbado que preside aos tempos actuais e que, em parte, nos colocou na
difícil situação que nos encontramos. Neste sentido, as obras desta artista,
ao trabalharem sobre a reciclagem dos materiais, do aproveitamento dos
restos, transformando o lixo em luxo, apelam a um outro entendimento da
arte no contexto ecológico, económico e social.
Um último aspecto a considerar neste conjunto de obras e que presidiu a
decisões de carácter expositivo e curatorial, prende-se com uma dicotomia
final entre espírito e matéria, ou, se quisermos, entre o lado mais popular da
espiritualidade e mais institucional da igreja que se expressa no próprio título
da exposição através da expressão simultaneamente popular e “religiosa”
“Fez-se Luz”. A oposição complementar deste lado dicotómico ajudou a
organizar as obras por dois núcleos principais, que passamos a descrever.
Espírito
As obras expostas na Igreja do Colégio possuem um lado eminentemente
espiritual. Este sentido advém, igualmente, pelo lado formal das peças que
têm um aspecto cruciforme, sendo verdadeiras relíquias pessoais. Pelo facto
de estarem expostas no espaço da igreja existe, aqui, a introdução de uma
ligação entre o profano e o sagrado. O profano dá-se de várias maneiras,
sobretudo pela referência à cultura popular. O lado sagrado, para além da
inserção no espaço religioso, manifesta-se na associação conceptual com os
cinco elementos, numa evocação de um outro ciclo, ligado à Natureza,
imbuída, ela própria, de uma enorme espiritualidade, numa vertente mais
arcaica.
Assim sendo, Arcanjo (2010) peça mais formal da exposição, simboliza o
éter, o quinto elemento e o mais subtil de todos, que tem sido muitas vezes
associado ao amor divino, ao aspecto devocional e imaterial do espírito.
Assente sobre um altar do Império, esta obra faz uma homenagem pessoal e
colectiva ao povo açoriano mas igualmente ao lado familiar da artista,
apresentando-se como uma espécie de dádiva. Contrasta e joga com o
retábulo barroco da Igreja do Colégio (outrora em talha dourada) e cuja
magnificência completa com a sua simplicidade, tal como qualquer crente
complementa a religião expressa no todo da Igreja.
Nesta obra encontramos, igualmente, alguns elementos fundamentais para a
compreensão da complexidade cultural destes trabalhos. Assim sendo,
aspectos particulares como as quinas utilizadas referem-se ao lado
expansionista dos portugueses e ao mito do Quinto Império que está, ele
próprio, em alguns autores relacionado à era do Espírito Santo. Podemos
verificar esta afirmação em obras como os Painéis de São Vicente de Fora,
atribuídos a Nuno Gonçalves, mais precisamente no painel central onde
vemos o santo com a Bíblia aberta no episódio do Pentecostes a que o culto
está directamente associado. O poeta Fernando Pessoa irá recuperar,
justamente, esta teoria, relacionando-a directamente com a missão dos
portugueses no Mundo, expresso n’ A Mensagem.
A globalização dos descobrimentos portugueses pode dar-nos a chave para a
interpretação da parte central da peça que é uma estranha máscara de um
pássaro negro, que lembra as tradições africanas e brasileiras mas
igualmente este lado arcaico do espírito, parecendo, simultaneamente, um
elemento exorcista ligado a diversos ritos iniciáticos. Ao mesmo tempo, é
uma reminiscência da sua infância, uma vez que sempre conviveu com estes
objectos em casa dos seus pais.
A questão expansionista marítima pode justificar, igualmente, o uso de outros
elementos como aqueles que lembram os ouriços-do-mar, assim como as
formas geométricas que são, no entender da artista, diversas povoações ou
comunidades que o povo português ajudou a construir. Simultaneamente, o
lado negro e branco desta peça poder-se-á relacionar com a própria
ambivalência de uma civilização, simultaneamente fechada sobre si própria e
aberta ao mundo, lembrando-nos o fado trágico da saudade e do império
perdido.
A obra Povoação (2011) é o elemento Terra, evocando a ocupação do
território na procura humana de um Paraíso Terrestre. Este aspecto esteve
sempre relacionado com o carácter místico do descobrimento das ilhas
açorianas. Há quem considere o arquipélago como a verdadeira localização
da Atlântida perdida.
Para este facto concorrem determinadas características como as brumas que
envolvem, frequentemente, as ilhas, a fertilidade imensa do solo e o clima
tropical que dota o território de um carácter exótico e exuberante. No que diz
respeito à existência dos animais nesta peça, refere-se a uma das teorias
históricas que sustenta que os primeiros colonos da ilha de São Miguel,
desconhecendo se o território lhes era ou não favorável à sobrevivência,
enviaram primeiro algum gado como cobaia. A importância que estes tiveram,
então, na povoação da ilha transforma-os em animais de luxo.
Desta forma, a artista está a prestar homenagem à Natureza, quer pelo seu
lado mais selvagem e terrífico, quer pelo seu aspecto domesticado, mas
também à coragem destes primeiros colonos em enfrentarem um terreno
verdadeiramente inóspito. O título da obra refere-se, justamente, ao primeiro
lugar habitado que se passou a designar como Povoação (velha) devido a
este acontecimento.
No centro da peça temos uma imagem religiosa de um Jesus negro que
atesta, mais uma vez, a ligação com África e nos recorda outra teoria descrita
por Gaspar Frutuoso de que, inicialmente, a ocupação havia sido feita por
africanos que vinham, naturalmente, nos navios portugueses. Desta forma, a
artista lembra-nos, novamente, o aspecto multicultural da história da
ocupação açoriana. Ao mesmo tempo, a referência à figura religiosa exprime
a ancestral luta do Homem com a Natureza, empenhado na vitória da ordem
sobre o caos que se expressa através da agricultura e do cultivo. O Santo
Cristo é também o protector dos campos, alguém que zela pela boa fortuna
do ano agrícola e daí a razão da celebração do culto pela altura da
Primavera.
Medo do Mar (2011) é, evidentemente, a Água, um elemento alquímico de
transformação no qual os homens procuram exorcizar os seus demónios.
Exprime, através de atributos ligados ao Espírito Santo como as pombas, a
crença num elemento protector, patente na velha máxima de “A sorte protege
os audazes”.
Em vários ritos espalhados pelo país, como a Romaria da Nossa Senhora da
Agonia em Viana do Castelo, pelas ilhas através da celebração failense da
Semana do Mar e em territórios outros como o Brasil com o culto de Iemanjá,
para dar apenas alguns exemplos, verificamos esta necessidade de auxílio
divino à navegação.
A ligação dos açorianos com o mar é intensa e carregada de ambivalência
entre a ameaça e a dependência, muitas vezes aventurando-se no imenso
oceano com embarcações tão precárias que lembram os barcos de papel,
submetendo-se ao perigo, ao desconhecido e imponderável.
A Lapinha (2011) é o Fogo. Esta peça é uma árvore genealógica da linhagem
materna de Catarina Branco, evocando a família emigrada para os EUA,
assim como a estrutura da Trindade. O seu título resulta dos objectos
populares feitos com lapas do mar que homenageiam a Sagrada Família.
A associação com o Fogo decorre do aspecto de calor humano que propicia
o aconchego e o refúgio. Um elemento curioso ocupa a parte central e
relaciona-se com uma lenda indiana do sapo das trêspernas que, quando se
zanga, utiliza este terceiro elemento para provocar na Terra um terramoto
como expressão do seu desagrado. Este aspecto sísmico presente
igualmente no vaso de terra na parte cimeira da obra, faz com que esta
noção de protecção ganhe ainda mais sentido, fazendo uma homenagem à
coragem das pessoas que, apesar, das características ameaçadoras das
ilhas vulcânicas e do isolamento da condição de ilhéu, aqui permanecem,
porque ligadas aos valores da família e das origens.
Finalmente, o Registo (2011) é o Ar, elemento mais próximo do éter, imbuído
dos símbolos do culto ao Espírito. O seu nome advém, igualmente, dos
objectos populares feitos artesanalmente que contam episódios da vida de
Cristo e que são colocados nas casas como uma espécie de amuletos
propiciando prosperidade e paz.
Encontramos aqui duas referências à memória pessoal da artista com o valor
de registo. Um deles ocupa o lugar central e é uma imagem do coreto de
Fenais da Luz, enfeitado com luzes para as festividades e que nos lembram
uma espécie de coroa. O outro, envolto também num elemento semelhante,
como se apelasse a uma camada protectora, é um slide da família paterna da
artista.
O valor da memória não se esgota, no entanto, nas referências particulares
da sua vivência. Estas obras são autênticos gatilhos para o banco de
imagens do observador e a ele apelam de forma muito pessoal e subjectiva.
Leva-nos a crer que, para além destas verdadeiras relíquias da artista, são
também objectos que nos falam daquilo que de mais inconsciente
possuímos. Se quisermos aplicar o conceito de inconsciente colectivo de
Jung, verificamos que se constituem como arquétipos que nos contam uma
narrativa muito antiga, enterrada na mais profunda espiritualidade.
Matéria
No núcleo expositivo de Santa Bárbara encontramos um outro conjunto de
obras que apelam, antes de mais, ao sentido visual, estético e táctil. Em
forma de ilhas, estas possuem um carácter alusivo à densidade vegetal e
material que caracteriza o arquipélago. Tecnicamente, são o resultado do
mesmo processo utilizado no conjunto de obras anteriores e lembram-nos
processos quer locais – tais como a construção dos tapetes e flores utilizados
nas festas religiosas – quer processos criativos de origens distantes como o
japonês origami. A exuberância destas obras coloca-as dentro de uma
estética pop, utilizando materiais comuns como o papel e os mapas das ilhas
(utilizados para aludir às crateras existentes nas ilhas) e as cores vivas que
nos recordam o exotismo açoriano.
A peça mais evidente, neste sentido, intitula-se Ilha Desconhecida (2010), e é
uma verdadeira homenagem à ilha de São Miguel. O seu título lembra-nos a
narrativa de Raul Brandão que nos conta a enorme diversidade que existe
entre cada uma das ilhas e que as singulariza. Daí resulta o facto de serem
atribuídas diferentes cores a cada uma delas, sendo que a ilha de São Miguel
é o verde, em associação com a sua vegetação profícua. A variedade dos
seus relevos e a flora endémica possibilitada pelo solo fértil e pelo clima
húmido e quente dota-a de uma capacidade rítmica, quase musical.
Esta exuberância vegetativa preside, igualmente, ao conjunto das peças
intituladas Vegetação Densa (2011). A profusão caótica de elementos que
parecem saltar do seu suporte onde estão inseridas é bastante evidente nas
obras Corações ao Alto (2011) que apelam ao sentido de entrega, como se o
coração quisesse saltar do peito em resultado da sua aspiração e devoção.
Apesar de, conceptualmente, haver nesta exposição, uma separação entre
Espírito e Matéria, o seu objectivo é a complementaridade. Nas obras de
Catarina Branco, assim como na vida, estes dois aspectos nunca se separam
e caracterizam aquilo que é a experiência humana, com um pé na Terra e os
olhos colocados no Céu.
“Fez-se Luz” é uma derradeira afirmação de uma espiritualidade na qual a
simplicidade dos materiais é engrandecida pela arte de quem os trabalha, e
cuja força não se pode ignorar porque está directamente ligada àquilo que
mais intrinsecamente nos caracteriza como humanos.
As obras de Catarina Branco são, também, um apelo à contemplação
contrariando a velocidade da nossa vida nos tempos actuais. Talvez isto se
deva ao facto de serem intrinsecamente açorianas mas prontas para dar uma
lição de esperança e alegria a toda a humanidade.
Carla Utra Mendes 2011
Entrevistas Catarina Branco
Diálogos no Íntimo
“Nós próprios, eis a grande questão da viagem.”[1]
Michael Onfray
Carla Mendes [CM] – Inicialmente, o título do teu projecto era “Terras
do Infante”, e recordas muito a história da ocupação dos Açores. De onde partiu
este interesse?
Catarina Branco [CB] – Da tentativa de me entender enquanto açoriana.
Fascinou-me esta questão da sobrevivência nas ilhas. Os primeiros colonos
deviam ter sido homens de uma coragem incrível. Quando começaram a construir as
casas deram origem a novas culturas. Nesta fase deu-se início a um processo de
trocas desde a botânica a outros aspectos, bastante exóticos, por vezes. Havia
uma verdadeira miscelânea de pessoas nos barcos (até piratas passaram por
aqui!). Somos descendentes dessas trocas e, esse aspecto em concreto, fez-me
questionar a minha própria identidade.
CM – Estas ilha são, geograficamente, uma espécie de Portugal continental
em ponto pequeno, porque em cada lado que viajamos, no arquipélago dos Açores,
vamo-nos lembrando de vários sítios tais como Sintra, o Norte do país, etc.
CB – E não só… da Flandres, da Inglaterra, entre outros. Os
investigadores da ocupação açoriana vieram a descobrir coisas incríveis… Dizia-se
na altura (por exemplo, Gaspar Frutuoso nas Saudades da Terra, que quando cá chegaram
havia nos barcos escravos negros e não só….
CM – Também existe um outro lado, para além da importação de outras
culturas, que é o da exportação ligada à emigração, à diáspora…
CB – A emigração aparece, com mais força, nos anos 1960, e não há
aqui família que não tenha primos, irmãos, entre outros, que não tenham
emigrado para os EUA por uma questão de necessidade e porque não havia forma de
subsistência. Esta procura do “sonho americano” fez com que muitas casas
ficassem abandonadas e devolutas, há terrenos que não se sabe de quem são, de
famílias que nunca voltaram… Isto aconteceu na família da minha mãe. A minha
avó materna, assim como as minhas tias (homenageadas na peça Lapinha, 2011), foram para os
EUA. Todos ficaram, menos a minha mãe, que chegou a ir e voltou para trás. Ela
afirmou para si mesma, num acto de derradeira coragem: “Se isto é o sonho
americano, é melhor voltar para a minha terra.” A vida lá não era fácil,
trabalhavam todo o dia nas fábricas… e o peso da saudade tornou a experiência,
por vezes, num verdadeiro inferno. A forma de ultrapassarem este sentimento deu-se
em torno da construção de pequenos bairros ou, se quiseres, pequenas ilhas, nas
quais se isolavam, importando as suas referências culturais, desde o Espírito
Santo aos elementos mais icónicos. Imagino a angústia destas pessoas, à procura
de um sonho que nunca conseguiram concretizar.
CM – Há sempre esta projecção maravilhada de um destino melhor fora
do local de origem, na procura de melhores condições de vida…
CB – O que nem sempre corresponde à realidade. Mas a minha mãe não se
deixou enganar, voltou para trás e traçou o seu caminho. Como eu… Escolhi
regressar de Lisboa após a minha formação e estabelecer aqui a minha vida. O
apelo das raízes foi mais forte. Neste sentido, a Lapinha que na sua origem é uma
homenagem à Trindade ou Sagrada Família, é uma sentida forma pessoal de
agradecimento à criação dessa estrutura que me sustenta.
CM – Aquele período de formação nas Belas-Artes veio a dotar-te de
algumas características fundamentais para o teu trabalho? Nessa altura, já
mencionavas algum aspecto da tua identidade açoriana?
CB – Sim, em ambas as questões. Foi fundamental a minha passagem pela
Faculdade, pelas pessoas com que me relacionei, com o modo como as aulas foram
dadas, etc. Fazendo uma retrospectiva, o facto de estar longe da ilha
proporcionou também um distanciamento com as minhas origens mas, ao mesmo
tempo, fez-me aproximar ainda mais delas. Para mim a Faculdade foi, justamente,
isso: uma passagem apenas, com o objectivo de me formar, absorver o máximo de
experiências, conhecer pessoas. Também me desiludi, de certa forma, com um
certo academismo quando, na verdade, estava à espera de uma maior abertura.
Todos estes factores fizeram-me ter vontade de regressar a São Miguel quando
findei o meu percurso formativo.
CM – De certa forma também tu vivias um sonho de uma realidade que
comprovou ser a contrária do esperado… Sentes, assim, que já tinhas o objectivo
de voltar para os Açores, à semelhança da tua mãe?
CB – Exactamente. Eu fui para Lisboa, tal como a minha mãe foi para
os EUA, a ver como as coisas iriam correr... Ao longo dos anos em que lá estive fui-me apercebendo que
não era uma cidade com a qual me identificava verdadeiramente, onde eu poderia
viver e trabalhar. O chamamento da ilha foi mais forte, tal e qual como
aconteceu com a minha mãe.
CM – Essa linhagem matriarcal é muito importante nos teus trabalhos…
CB – A mulher sempre foi a estrutura e o suporte emocional, biológico
da família. Era ela que alimentava e cuidava das crianças. No entanto, isto
nada tem de redutor, antes pelo contrário. Ao ficar em casa tornava-se mais
criativa, reaproveitando o que tinha. Como não havia acesso a muitos materiais
e meios era, basicamente, o que o
homem trazia para casa: do cultivo dos campos a folha de milho da qual ela
construía objectos; da pesca, o peixe, do qual ela aproveitava as escamas para
fazer outros objectos, e assim sucessivamente.
CM – Era o que se passava com a tua avó paterna, certo?
CB – Sim.
CM – De que forma ela é fundamental no teu trabalho?
CB – Quando eu era criança, vivíamos todos nos Fenais da Luz, terra
dos meus avós paternos. Os meus pais iam trabalhar e eu ficava com a minha avó.
Esta ligação é crucial para o entendimento deste projecto. Ela tinha uma
relação muito próxima com a igreja, ficando responsável por fazer a decoração
dos andores na altura das festividades e eu acompanhava-a muito nessas
experiências, as quais vivia com extrema curiosidade e maravilhamento. Já na
altura tinha muita vontade em saber como é que a partir das escamas de peixe ou
pedaços de papel se podiam construir objectos apelativos. Enquanto criança este aspecto lúdico
fascinava-me. Neste sentido a minha avó estava muito próxima de mim porque, ela
própria, tinha um mundo muito mágico dentro da sua casa. Ela tinha, inclusive,
uma colecção de bonecas guardadas numa casota anexa, onde as construía e vestia
e com as quais brincávamos. Isso, para mim, era uma delícia, pois ela estava ao
mesmo nível que eu [risos].
CM – Como é que caracterizavas a vivência nessa altura? Muito voltada
para o interior?
CB – A vida dos meus avós no campo era vivida de forma diferente da
nossa, actualmente. Pelo menos o meu pai conta-me que era raro as pessoas
saírem do sítio onde nasceram. Os próprios caminhos eram completamente
diferentes, era tudo trilhos de terra, as populações eram fechadas com muros
que cercavam as vinhas (arrebentação) e a forma de as pessoas se deslocarem era
mais complicada… levava dias para as pessoas irem para um local diferente da
ilha. Estas viagens tinham de ser muito programadas, faziam-se piqueniques no
percurso, etc. Para chegarem à Ribeira Grande, por exemplo, algo que, agora, de
carro leva cinco minutos, demoravam um dia inteiro.
Os meus avós não saíam dos Fenais da Luz a não ser de carroça,
charrete ou, claro, a pé. Aquela zona era, assim, um micro-espaço dentro de um
micro-espaço, é mais uma ilha dentro de uma ilha. Actualmente ainda encontras
pessoas nos Açores que nunca saíram do seu lugar. Existe uma senhora,
entretanto falecida, que nunca tinha saído da aldeia da Lagoa das Sete Cidades
para ver o mar – que é mesmo ali ao lado. Intuo que a minha avó tenha tido um
universo íntimo tão rico por ter passado por essa experiência.
CM – Não eras dependente de elementos externos.
CB – O mundo não podia ser mais divertido do que aquele. A minha avó
era uma mulher feliz no seu mundo. Na verdade, não precisava de sair dali.
Ainda para mais, como estava sempre em casa, tinha uma disponibilidade enorme
para mim. E dentro daquela casa tínhamos tudo para construirmos o nosso pequeno
universo: aproveitávamos pequenas mantas, retalhos de cobertores, o papel, etc.
Ao brincarmos, ela estava-me a ensinar, a passar o legado daquilo que lhe era
mais querido e que vivia com muita intensidade. Mas, ao mesmo tempo, a
preservar a tradição e cultura açorianas. Tanto que, hoje em dia, ainda estou a
falar disso através do meu trabalho…
CM – Já abordámos o lado feminino na inspiração para as tuas obras; e
o teu pai? De que forma achas que ele se encaixa neste processo da memória que
trazes para estas obras?
CB – O meu pai é outra referência fundamental na minha vida. Ele foi uma
das principais fontes, não só destes trabalhos mas como do meu trabalho em
geral. Foi através dele que comecei a desenhar e mostrar interesse pela
pintura. A primeira prenda que ele me deu foi um conjunto de lápis e com eles
brincávamos juntos aprendendo e, ao mesmo tempo, estabelecendo laços de afecto
entre pai e filha. É curioso verificar que, nestas obras, algo dele se encontra
presente também, a um nível mais técnico, pela via da tridimensionalidade. Ele
tem uma pequena oficina onde elabora as suas chapas de metal e constrói
pequenas esculturas, que foi algo que sempre me encantou.
CM – E de que forma se encaixa a espiritualidade neste processo?
CB – Imagina o que era o medo do mar, dos sismos… esta terra tremia
(treme) constantemente. A forma encontrada para reagir a este poder da Natureza
era agarrar-se a uma crença, pedir uma protecção divina, libertando os medos.
Para mim, este exorcismo e, ao mesmo tempo, o valor da dádiva e da troca, foram
motivos muito fortes para a construção destes objectos. O meu processo criativo
neste caso foi uma espécie de catarse e envolveu um ritual muito específico, de
uma entrega incondicional (arranjei uma tendinite e tudo!). A escolha do papel
teve a ver, igualmente, com a minha gravidez pois não podia conviver com
materiais tóxicos. Nesta contingência, uma coisa levou à outra e, de repente,
vi-me envolvida num processo de reminiscência pessoal, de interiorização, de
verdadeiro autoconhecimento. Também por ser mãe… A maternidade, desta forma,
fez-me voltar atrás e dar ainda mais importância à estrutura familiar e ao
facto de as coisas correrem bem. Simultaneamente, a minha vontade em transmitir
este legado cultural, muito espiritual, surgiu naturalmente. É, se quiseres,
uma forma de agradecimento e de homenagem… numa fé que não tem forma.
CM – E porquê a escolha da Igreja do Colégio como local para a exposição?
CB – É única igreja nos Açores que nos permite estabelecer um
contacto mais próximo entre a arte e a religiosidade. Nas outras é complicado
fazer qualquer tipo de intervenção artística. Acho que faz muito sentido que
haja esta interacção pois a igreja é um espaço de recolhimento, de contemplação
e isso relaciona-se muito com a observação necessária às obras de arte. Isto
por um lado. Por outro, a igreja esteve sempre presente na minha vida, não
apenas pela relação com a minha avó, estando ela muito ligada à vida religiosa
como já disse, mas porque a própria população de Fenais da Luz se organizava em
torno do adro da igreja. As casas da minha família estão todas localizadas em
seu torno ou nas imediações. E esse aspecto comunitário fascinou-me. A união
humana à volta de algo maior que nós próprios.
CM – Esta questão da dádiva é algo que se perdeu muito entre as
pessoas. O individualismo (o egoísmo) actual da contemporaneidade comprova este
facto. No entanto, e agora com a crise económica, as pessoas terão de se voltar
para a terra e de entrar dentro de um sistema de trocas de bens. Esta ideia de
partilha aqui deve-se muito ao culto do Espírito Santo…
CB – É uma coisa muito comunitária, sempre foi assim e ainda é. É um
sentimento que persiste nas ilhas e tem resistido ao passar dos anos… e ainda
bem. Este ano a procissão do Santo
Cristo (que é sempre qualquer coisa de mágico) teve uma enorme afluência talvez
devido, justamente, à crise. Mas, para além deste lado de sofrimento e angústia
que todos estamos a passar, existe aqui uma componente de alegria importante
para os tempos actuais. A própria festa é um acto de ligação com o divino.
Através desta estamos a estabelecer essa conexão necessária para nos agarrarmos
à vida e isso é uma manifestação de alegria. Não é?
Carla Utra Mendes 2011
No recorte ázimo da festa
O Museu Carlos Machado, como lugar de cultura,
congratula-se com mais esta oportunidade de revelar e promover uma jovem
artista, cumprindo o seu desígnio enquanto serviço público.
Catarina Castelo Branco, nascida em São
Miguel, expõe pela primeira vez no Museu Carlos Machado, apresentando um
conjunto de dez obras de grandes dimensões, em suporte de papel, rigorosamente
recortado, quase de forma compulsiva.
Esta jovem e promissora artista fundamenta e
desenvolve o seu trabalho a partir da plasticidade das vivências quotidianas de
um povo, que, ciclicamente, recria o picotado da festa. A amplitude e
profundidade deste trabalho, agora exposto, segue a geografia de um imaginário
popular, estabelecendo relações internas, fortemente coesas, que cruzam a
abstracção.
Com uma singularíssima intensidade recortada,
Catarina Castelo Branco serve-se com emoção da técnica dos seus antepassados de
Fenais da Luz, interpretando histórias rasgadas pela espontaneidade do impulso
criativo. Esta artista, com a exposição “Fez-se luz”, homenageia a graciosidade
do povo, pela repetição e doçura do gesto com que abre brechas no ázimo e nas
primícias da terra.
Diria que o trabalho de Catarina, na sua
complexa gramática criativa, anuncia por inteiro um talento emergido no
contexto contemporâneo da insularidade açoriana.
Duarte Manuel Espírito Santo Melo
Director Museu Carlos Machado
Feira de Arte Contemporânea em Lisboa - 2010
Feira de Arte Contemporânea de Lisboa - 2011
2013 - Centro Cultural CEEE Erico Verissimo - Fez-se Luz - Porto Alegre - Brasil
Catarina Branco nasceu em São Miguel, Açores, em 1974
Viveu a sua infância e adolescência nos Fenais da Luz, freguesia rural do
Concelho de Ponta Delgada.
Em 2000 terminou a Licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa.
Desde aí tem apresentado os seus trabalhos em exposições individuais e
colectivas.
As obras de Catarina Branco são um apelo à contemplação contrariando a
velocidade da nossa vida nos tempos actuais. Talvez isto se deva ao facto de
serem intrinsecamente açorianas, mas prontas para dar uma lição de
esperança e alegria a toda a humanidade.
A peça de chão, que cobre grande parte da área expositiva, está
directamente ligada à história pessoal da artista e à sua vivência enquanto
criança nos “Fenais da Luz”, na ligação com a sua avó paterna que lhe legou
as tradições do recorte de papel, o aproveitamento dos materiais perecíveis,
a construção dos tapetes de flores para as procissões religiosas e o lado
lúdico de alguém que vivia feliz no espaço contido da sua casa. Esta é,
igualmente, uma forma de viagem mas, desta vez, em direcção ao interior, ao
íntimo. Podemos afirmar que este trabalho também faz referência às formas
características de outras civilizações - o seu lado de miscigenação ou de
hibridação.
Tanto na peça de chão como nas obras projectadas na grande tela, podemos
verificar as ligações estabelecidas com África, Brasil e Oriente, fazendo jus
ao próprio povoamento e colonização açoriana, ela própria protagonizada por
povos de diferentes origens. Este aspecto coloca o trabalho de Catarina
Branco numa perspectiva verdadeiramente globalizante, reflectindo sobre a
ideia de equivalência ou partilha cultural.
Fátima Mota